quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Assombrações


As tristezas que carrego comigo
Ninguém as vê quando eu chego
Os pântanos por onde andei
Não deixaram marcas em mim
Nem a caverna onde me escondi
Deixou lodo nas minhas sandálias...

Sou a pior de todos os bandidos
Sou assassina, viciada, estragada
Sento na beira da estrada
E abro a minha mala
E nela encontro postes quebrados,
torneiras que pingam lama,
artérias sangrando sem parar,
corpos se decompondo, vestes sujas, rasgadas
onde faltam tantos botões...

E dentro dessa mala tem tantas flores
Flores malditas, flores secas,
Flores secas cobertas com espinhos malditos!

Sou a escória, sou o desastre,
Sou o pior fruto do pior pecado
Carrego as podridões de uma existência conturbada,
Com paredes acimentadas com mentiras,
roubos, mortes, trapaças e crimes inconfessáveis
que tornam minha mala insustentável.

No caminho, vi um cavalo branco
Deitado na estrada
Morto!
E nele eu vi a mim mesma
Sendo comida por vermes
Escuto sua voz, mas não te vejo
Sinto no peito uma luz fraca brilhar
E um sopro de esperança me vem à mente
Será que o seu amor poderia me salvar?

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Ode à Deusa da Mentira
 
Em meio a tanta hipocrisia
Pequenez, mesquinharia
Eu desejei voar
Me transformei
Subi aos céus
Transcendi o universo
Abri as minhas asas imortais
Acima do fogo, do gelo e da morte.

Eu quis te dar um poema
Escrito no ar
Com tintas de sangue, ouro e poeira
Joguei meu manto
Sobre os loucos, sonhadores,
Protegi as almas dos poetas
Da caretice dos idiotas
Da cegueira dos tolos mortais
Da escuridão dos fanáticos
Eu protegi os pintores, escultores,
Alquimistas e cineastas
Atores e cantores
Escondi os deuses da Arte,
Da Tragédia e da Comédia
Com a força de uma constelação de elefantes
Com o brilho de todos os cometas
Com os poderes do Nilo
E a força do que é belo e puro.

Pra eternizar o meu amor
E te salvar de quem contra nós conspira
Num lugar onde ninguém jamais duvide 
do que escreve a Deusa da Mentira.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Cinéfila

Judith decidiu se matar. 
Foi com o amigo Justin até a barbearia de sempre e roubou sorrateiramente uma navalha. 

Na saída, viu o cartaz de La La Land. 
E pensou: "Talvez hoje não..." 
Se ela morresse hoje ficaria com essa pendência. 

Esse "coisas por fazer" a perseguiria no umbral. 
Os espíritos não evoluídos ficariam atormentando "Judith você não viu La La Land..."
Então ela foi pra casa.
Até por que "morrer num fucking sábado?" 

Quem em sã consciência se mata num sábado? 
E cadê aquele gostinho de morrer num dia de semana e fazer todo mundo faltar o trabalho e quebrar o sistema just for one day?
Então ela simplesmente fechou o blackout, sentou no sofá e apertou o play.

Crime doloso




Fui eu que joguei a bomba caseira. 
Na madrugada de uma sexta-feira. 
Minha única testemunha foi a Lua.
Eu destruí a casa em que um dia fui tua.
Soube que tua amante comprou aquele sobrado antigo.
Mudou as cores, matou as plantas, trocou as chaves.
Então eu decidi, meu amigo,
Que ela não seria feliz onde um dia eu fui.
Pesquisei na internet como fazer uma bomba caseira. E fiz.
Comprei cada material como quem compra ingredientes de um bolo. 

Me surpreendeu a facilidade com que minhas mãos eram ágeis para manipular produtos químicos e concluí que o ódio me fez mais forte e inteligente. 
Como se eu fosse a McGiver das mulheres frustradas.
Com a bomba pronta eu precisava de um álibi.
Dei entrada no Pronto Socorro vomitando. 

Enchi a recepção de restos de sopa e suco Detox verde. 
Foi uma obra de arte. 
Fui atendida com bastante atenção. A bomba na bolsa. Numa nécessaire. 
Parece que quando você vai cometer um crime todas as pessoas te respeitam inconscientemente.
Ao sair do hospital, passei de táxi na frente da casa. 

A rua deserta. Dispensei e fui um quarteirão a pé. 
Parei em frente ao portão. 
Senti aquele arrepio que eu sentia quando ia te encontrar​. 
Aquelas paredes, aquelas escadas, aquelas portas, aqueles corredores escuros, a infiltração que você nunca mandou consertar. 
Tudo estava lá. Menos nós.
O ódio explodiu. Acendi o isqueiro. Queimei o estopim. 

E arremessei aquela bomba como se eu fosse um jogador americano de baseball.
Saí correndo.
A Lua me perseguia.
Me espionava.
Escutei a explosão. 




Parei outro táxi que vinha passando e antes das 7:00 eu já estava chegando na loja com o atestado em mãos. 
Todos com pena de mim.
"Vá pra casa, Amália. Você nem deveria ter vindo do hospital pra cá. Que moça responsável. Vá pra casa."
Assim foi.
Os jornais não deram muita atenção.
Os vizinhos logo esqueceram.
Mas eu sei que ela entendeu. E sei que você entendeu.
Isso me basta.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Ampulheta da minha dor



I
E o que se fez da nossa janela?
E as manhãs que acordaram frias e cinzas sem notícias suas?
E as canções que foram enterradas em uma cápsula do tempo
Cobertas com o asfalto do esquecimento.

II
E as tardes, em que as emoções foram arrancadas pela raiz?
Empilhadas lembrança por lembrança, 
Numa montanha de lágrimas, dores, saudades, prazer
E queimadas numa grande fogueira de paixão e luto.

III
E as noites, que perderam sua graça e loucura
E hoje quando passo naquela ponte, e vejo as pedras banhadas de luar
Sinto o peito rasgando, queimando, coração crepitando
Por ao redor tudo olhar e suas pegadas não mais encontrar.