Quando começou, eu estava sentada numa cadeira de madeira. Em minha frente uma mesa longa de também de madeira, sem toalha, a tinta já descascando, mesa velha. À frente da mesa uma varanda, com cercado de madeira, como se fosse um alpendre. E para completar a minha visão eu tinha simplesmente o encontro das águas. Metade Rio Negro, metade Solimões. Meia água negra, meia água barrenta. E eu ali, sentada, extasiada com o fenômeno. Ali como se fosse uma pintura, como se eu estivesse no Louvre, apreciando a paisagem mais bela, do mais caro quadro, daquele pintor mais talentoso dentre todos os outros que, como eu serei, só teve seu valor reconhecido após sua morte. Mas eu estava na minha Manaus. Na minha terra. No meu pedaço.
Eu estava feliz por estar ali. Estava tranqüila e em paz. O vento nos meus cabelos enrolados, tão negros quanto negras são as águas do meu Rio. O sol forte, na minha pele, era excitante e dava um tom moreno dourado que me deixava ainda mais bela do que eu jamais fora antes. A calma perene das águas que se encontravam e não se misturavam trazia-me pensamentos diversos sem que eu me apegasse a nenhuma idéia em especial. Apenas estar ali naquele lugar simples apreciando a grandeza amazônica já me causava enorme prazer, aumentava minha estima por mim mesma, e trazia-me a sensação de ser enfim, uma pessoa de grande sorte, por haver nascido em tão lindo lugar.
Veio em minha direção uma moça de feições indígenas, cabelos lisos, olhos amendoados e fala mansa. Cumprimentou-me e ofereceu-me gentilmente o cardápio e, por alguns segundos, pensei que estivesse fora de Manaus, por que aquela moça me atendeu com simpatia e atenção. Tinha um sorriso fraterno e uma expressão amiga no olhar. Não me senti como normalmente me sinto em vários estabelecimentos de Manaus onde os atendentes sequer nos olham na cara e nos tratam com tanto desprezo que revelam seu completo amadorismo num mix de despreparo e descaso mesmo. Mas naquele meio-dia, daquele dia ensolarado, o atendimento foi excelente. Apesar do ambiente rústico, o prato de caldeirada de tambaqui veio rápido, o caldo quente fumegante me aquecia a alma e só aumentava o meu apetite. Pelo aroma daquele peixe, praticamente se poderia definir cada ingrediente empregado para prepará-lo. Tinha tudo para ser um almoço perfeito por que tudo até aquele momento estava sendo primoroso.
Nunca devemos duvidar da benevolência dos deuses. Eles sempre podem nos surpreender e sobrepujar as nossas humanas e limitadas perspectivas. Quando você imagina que as coisas já estão muito boas, acredite: elas podem melhorar ainda mais e nos maravilhar com os caprichos do “Inesperado”. Eu sempre confiei no Inesperado e sempre me referi a ele como um cúmplice. O Inesperado sempre me brindou com agradáveis mimos, que sempre me fizeram crer que eu fosse uma escolhida, uma privilegiada. Por que pra mim, até quando tudo parece dar errado, dá certo. É impressionante! Sempre que acham que estão me prejudicando, estão me elevando. Quando todos tramam nas minhas costas, quando murmuram entre si, quando riem e cochicham para que eu não saiba de suas tramóias e pactos, eu acabo descobrindo tudo sem o menor esforço. A verdade cai em minha frente como manga madura, pronta para ser sorvida.
Naquela manhã o inesperado foi muito cordial comigo. Pois que, escutei vozes vindas de trás de mim, não distingui muito bem, por que ainda estou lutando contra o velho hábito de escutar conversas alheias, o que pode ser perigoso e, ás vezes, até mesmo trazer algo de frustração, porquanto nos envolvemos com histórias das quais nem sempre conheceremos o desfecho. E mais sofrido é escutar conversa alheia quando os interlocutores estão falando mal de você. Por isso optei pelo que eu batizei de surdez oportunista. Mas naquele instante não pude deixar de prestar atenção quando ouvi aquela voz já tão familiar para meus tímpanos cansados. Era o poeta Thiago de Mello que chegava para almoçar comigo. Eu não me lembrava de termos marcado este encontro, busquei na memória em que momento nós combinamos de apreciar uma caldeirada na beira do rio. Foi inútil. Sondei, em fração de segundos, os registros de uma conversa telefônica que me veio como um flash, um de já vu. Nada. Não sei como foi, mas ele sentou-se ao meu lado. Conversou comigo como se fôssemos bons companheiros. Um clima fraternal se instaurou. O cheiro do rio, do caldo de tambaqui, o vento, o mormaço, a conversa, tudo compôs um dos momentos mais pulcros que já vivi. Relembramos da primeira vez que conversamos.
Foi logo após a palestra do amigo Milton Hatoum. Thiago fora convidado para falar sobre o autor ali presente. Foi uma noite daquelas! Auditório lotado, a equipe da TV Universitária fazendo a gravação ao vivo do que, após editado, viria a ser um programa. E dias mais tarde, muitos amigos meus vieram me cumprimentar, dizendo que tinham me visto no programa da palestra com o Hatoum, que eu apareci dezenas de vezes, em close, rindo, séria... A câmera me ama, isso eu sempre soube. Enfim, voltando ao dia da palestra. Quando acabou a participação de Thiago, ele desceu as escadas, pegou alguns livros que havia deixado na cadeira ao meu lado. Olhou pra mim, parou na minha frente. Pegou na minha mão e disse olhando em meus olhos:
- Você tem luz. Eu estava lá em cima, no palco e pude ver. Eu vi a luz que emana de você. Seja lá o que você está pensando em fazer, faça. Não desista. Não pare. Siga em frente por que o mundo está esperando por isso.
E saiu do auditório. Simples, prático e firme. E eu fiquei ali sentada, repetindo no pensamento aquelas palavras para não deixar escapar nada. Eu precisava escutar aquilo naquele momento da minha vida. Ali, eu recebi aquelas palavras como profecia, como se Thiago fosse um oráculo e eu uma exploradora de cavernas escuras, que precisa de uma vela e se depara com uma tocha. Thiago não sabe que naquele dia ele impediu que todo o meu talento fosse defenestrado. E que eu mesma subisse ao abismo e me precipitasse. Após aquele dia voltamos a nos encontrar em vários eventos literários e a cada novo encontro, mais crescia a afinidade que sentíamos naturalmente um pelo outro. Talvez em outras vidas tenhamos sido lobos da mesma matilha, ou camponeses da mesma aldeia. Quem saberá?
Nós dois almoçando juntos, sentados em frente ao Encontro das Águas, relembrando este dia e brindando com guaraná Baré. Isto é um privilégio para poucos. Foi então que começou a se destruir tudo ao redor. O rio subiu rapidamente. A brisa gostosa virou ventania. O vento amazônico virou extraordinário vendaval. As águas calmas e compassadas se converteram em tempestade, o banzeiro virou tremendo rebuliço e o rio começou a invadir o restaurante, levou minhas sandálias, levou meu prato, meu copo, levou tudo. Eu fiquei só.
Olhei para o lado. Thiago não estava mais lá.
Silêncio.
As águas começaram a baixar e escutei a voz de Thiago dizendo baixinho, quase como se fosse a voz de minha própria consciência, como uma intuição benfeitora: “Cuidado com as cobras! Olhe para o chão!”
Neste instante fui corroída por uma mistura de paúra e curiosidade. Olhei pro chão. E eu vi. Centenas, milhares delas. Enroladas, com suas peles brilhosas, escorregadias, entrelaçadas entre si, formando uma tela pavorosa. Eu subi os pés sobre a cadeira e fiquei com medo de cair sobre aquele amontoado de cobras, que se contorciam num frenesi mórbido.
Acordei. Estava em minha cama.
O coração batendo acelerado. A vida salva. ( -Será? – murmurou a voz de Thiago de Mello.)
Eu não costumo ser supersticiosa. Tento levar a vida no dia a dia com leveza, espiritualidade e mente aberta. Mas juro que se a minha mãe fosse viva, ela apostaria no jogo de bicho. Jogaria na cobra. Número 9. Na cabeça. E me aconselharia a ficar esperta, ser astuciosa, manter-me sagaz, observar qualquer lance maldoso disfarçado de boa intenção. Minha mãe era clarividente. Ela sabia mais do que eu sobre o mundo invisível.
Mesmo não sendo assim tão crente nessas coisas de que "sonhos são avisos", naquele diz olhei para todas as pessoas com ar de desconfiança. Desde o porteiro do meu prédio, até a moça que me serve o café todos os dias, passando pelo motorista da minha condução até o rapaz que veio trazer a pizza no fim da noite. Olhei para todos assim, meio de lado. Analisei cada gesto, cada modulação de voz, cada tremor nas mãos...
Pelo sim, pelo não, até que se prove o contrário, todos, todos são suspeitos...