domingo, 18 de dezembro de 2011

O infeliz caso do Moretti

Nilson era um apaixonado por música e, desde cedo, Dona Alberta tratou de inscrever o filho único na escola de piano, que ela conseguia pagar com fatia relativamente gorda de sua pensão de viúva de funcionário da Faculdade de Direito do Amazonas. O saudoso Dr. Clodomir Santos Moretti era figura cativante e, quando ele morreu tísico, todos os membros da Faculdade de Direito lamentaram, o luto abateu-se desde as raízes das árvores da Praça da Igreja dos Remédios até o último reboco sobre o último tijolo da última parede daquele monumento por onde tantos magistrados passaram e tantas vidas tiveram seus esboços traçados nas linhas gloriosas das Leis e do Direito. O velório do Dr. Clodomir foi no Salão principal da Faculdade e dele participaram tanto figuras ilustres quanto pessoas simples do povo, grandes nomes do comércio da cidade e autoridades políticas e intelectuais, devido ao carisma e simpatia que era suas marcas registradas, revelando o espírito evoluído que seu corpo abrigava.
Como filho de peixe, peixinho é, Nilson era também muito querido pelos familiares, vizinhos e colegas do colégio Dom Bosco. Todos os que conviveram com ele durante o decorrer de sua vida, sempre tiveram a impressão de que ao lado dele tornavam-se melhores. Como se a presença de Nilson, a atenção que ele as dedicava e os assuntos que com ele conversavam, bastassem para que elas progredissem. E como ele fosse o único filho do Dr. Clodomir, foi praticamente adotado por todos os amigos de seu pai. Cada admirador do pai transferiu parcela dessa estima ao filho. Assim Nilson teve oportunidades privilegiadas de circular desde muito jovem entre grandes pensadores, empresários, artistas e políticos, o que lhe proporcionou ter uma mentalidade muito aberta às novidades, à modernidade e à liberdade. Esse caráter moldado com alicerces tão briosos fazia de Nilson um homem charmoso, cavalheiro e encantador. Porém ele, apesar de ter tido breves romances, e ter sido pai jovem, aos 20 anos, num relacionamento volátil com uma pintora francesa que acabara de fixar residência em Manaus, não havia ainda experimentado o significado real da palavra amor, tema principal de suas composições, sobre o qual ele falava, escrevia e até cantava (só entre os amigos, evidentemente) de modo soberbo e prodigioso. Havia em seu íntimo a curiosidade de sentir esse amor na alma e na carne, precisar de alguém, sofrer por alguém, desejar ardentemente um beijo, chorar por uma saudade, sorrir ao sentir um perfume, sentir arrepios percorrerem-lhe o corpo ao lembrar-se de um momento de prazer. Coisas que não lhe soavam tão familiares, mas que ele sabia que um dia ainda iria vivenciar. Dentro de seu coração havia uma labareda que lhe dizia, em seus momentos de solidão, que sua musa ainda chegaria para completar sua obra com toda sorte de emoções e sensações que ele sequer sonhava que numa existência se pudessem experimentar.
Aos 25 anos, após meses de ensaios diário e exaustivos, para orgulho de sua mãe, Nilson iria estrear seu espetáculo apresentando ao piano um pout-pourri de canções que iam do clássico ao popular. Com todos os lugares vendidos e ampla divulgação pelos meios de comunicação da cidade e convidados especiais como a magnífica Maria Caldas, a voz feminina do Amazonas, o poeta, filósofo e ecologista mundialmente conhecido Arthur Dias, declamando alguns versos de sua autoria ao som do piano de Nilson e o levantador de toadas do Boi Caprichoso, o extraordinário Celso de Moraes, no Teatro Amazonas, que nesta noite estava inteiramente iluminado assemelhando-se a debutante em noite de valsa. O coquetel ao fim da noite havia sido preparado pelo cerimonialista Heinz Ferrarezzi, que cuidou de toda a divulgação, ornamentação, convites e a coletiva de imprensa que o músico deu aos jornais, revistas, sites e blogs especializados em música e arte, vindos de todo o Brasil.
A apresentação foi vibrante, carregada de emotividade. O talento de Nilson Moretti se consolidava num êxtase que entorpecia os presentes no teatro aquela noite. Dona Alberta não cabia em si de felicidade ao ver o filho brilhar. Homens e mulheres amantes da música, estavam sendo acariciados intimamente por um estudioso que expunha suave sensibilidade ao tocar de Beethoven a Luiz Gonzaga. E na platéia ele notou um olhar que trazia algo mais que surpresa, mas verdadeiro entusiasmo de quem entra em um mundo novo de delírio e paixão. Era uma mulher mais velha. Bem mais velha, aliás. Se Nilson contava então 25 anos completos, aquela mulher não poderia ter menos de 50. Mas ele, tendo um teatro lotado, ao notar aquela dama de vestido vermelho, com olhos de banzeiro, e séria como uma escultura, espontaneamente passou a tocar como se apenas ela estivesse ali. Como se fosse uma apresentação particular para brindá-la. E, ao final, ambos não se perderam de vista. Nem mesmo quando ele fora conduzido pelo empolgado Heinz Ferrarezi ao camarim para os cumprimentos, fotos e autógrafos. Nilson sentiu um desespero inesperado ao pensar que ela poderia ir embora e nunca mais ser encontrada. Porém um bálsamo recobriu seu ser quando bem à sua frente ele a viu outra vez. Agora bem mais de perto e ela lhe disse, em tom quase inaudível: “Eu amei a sua apresentação!”. Quando suas mãos se tocaram ele intuiu que ela também tocava piano. Eram cúmplices na mesma arte e já isso era algo em comum, sobre o qual poderiam passar madrugadas debatendo, ao som de Caetano e bebericando um bom Cabernet Sauvignon de Napa Valley, 1941. Para ele, o melhor vinho do mundo.
Como se tivesse feito uma previsão de futuro, após algumas horas, eles estavam caminhando pela cidade, falando sobre suas vidas, seus sonhos, seus planos, um pouco de tudo e, ainda assim, estavam naquela corda bamba de quem sente como se já se conhecessem a vida inteira e como se quisessem saber tudo o que há por trás daquele rosto já tão querido. Ele a estava amando desde que a viu na platéia e, pelo modo como ela o olhava, mesmo sendo madura, mas com ar angelical e, por vezes, infantil, ele acreditou que era correspondido. Perguntando sobre algumas áreas difíceis de tocar, sobre a dificuldade que ela tinha de se apresentar para platéias e a dor por ter deixado o amor e o talento em segundo plano para seguir o ex-marido militar e ser mãe de gêmeas “Hoje já adultas de 25 anos”. Após andarem pelas ruas do Centro, retornaram ao Largo e foram ao Bar do Armando onde ela tomou apenas água enquanto ele tomou uma cerveja muito gelada, para abrandar o calor das noites de Manaus. Depois de conversarem por horas e trocarem telefones e e-mails, eles se despediram apenas com um aperto de mãos, por que embora ele já tivesse percorrido com os olhos todos os caminhos do rosto daquela linda mulher, faltou-lhe a ousadia necessária para chegar à sua boca. Faltou-lhe a tenacidade para tomá-la para si, em seus braços fortes e jovens e fazê-la desfalecer por seus beijos.
Na manhã seguinte, ela foi ao Centro de Artes onde Nilson dava aulas e ensaiava. Levou algumas composições suas e parecia uma estudante, ávida pelo saber. Passaram o dia juntos, almoçaram juntos, tinham tantos assuntos e ele incrivelmente se sentia mais velho do que ela pela forma como ela o tratava. Tanto respeito e admiração em seus gestos!
Nilson precisou se ausentar uns dias da cidade para participar de um evento para jovens pianistas em Parintins. Mas aconselhou que ela continuasse a freqüentar o Centro de Artes para renovar seu repertório, conhecer mais músicos e arriscar-se em novas tendências. Ela obedeceu, embora receosa por não conhecer ninguém ali, e com tantos jovens por perto, ela se sentia desconfortável. Mas obedeceu ao seu jovem mestre.
E quando voltou da viagem Nilson veio decidido a declarar o seu amor absurdamente maravilhoso. Pensou nela durante todos os minutos que esteve fora. De noite, no barco, olhando as estrelas, deitado em sua rede Nilson sentia no peito uma dor física e a saudade fincava-lhe estacas de madeira como se ele fosse um vampiro desgarrado na noite nebulosa. Tudo o que ele queria era ver novamente a mulher mais impressionante que ele já conhecera. Foi ao Centro de Artes no mesmo dia em que desembarcou em Manaus. Nilson trazia consigo uma imensa carga romântica e vários presentes para a sua amada. Como não sabia o que dar a uma mulher de 50 anos, trouxe muitos, torcendo para que ao menos um a agradasse. E ele chegando à sala a viu numa cena que somente o som de Carmina Burana poderia servir como trilha sonora. Ela e o professor alemão Wolfgang Sommerfeld estavam se beijando. Não se abraçando. Apenas beijando. Ela segurava seus livros e partituras. Ele mantinha os braços estendidos ao lado de seu corpo. Apenas inclinaram-se e entregaram-se a este beijo que parecia ser o primeiro. Olharam-se ela e o alemão. Combinavam perfeitamente. Ele tinha 62 anos. Viajara o mundo inteiro e decidiu que o Brasil abrigaria seus ossos. Nilson estava petrificado. Parado à porta, sentiu a morte espalhando-se dentro de si. E desceu as escadas do Centro de Artes, os olhos congelados, indo direto ao bar do primeiro encontro, onde bebeu compulsivamente até desmaiar.
Nilson nunca mais dirigiu a palavra a ela embora se encontrassem com freqüência. Ela não entendia, mas acatou o desprezo de Nilson, pois na verdade nunca esteve apaixonada por ele, apenas o admirava profissionalmente enquanto, Wolfgang sim, a atraía como mulher. Sentia por ele desejo carnal aliado a uma intensa afinidade pessoal. Em tudo ele lhe era apropriado, e ela não sabia se daria certo, mas estava decidida a correr o risco. Nunca, em momento algum, ela pensou em envolver-se amorosamente com Nilson, mas o tinha em alto grau de afeto e estima. Tanto que sentiu grande tristeza por ter sido abandonada pelo novo amigo, por quem ela já nutria grande consideração. Mas o momento era de descobrir este novo sentimento, viver a paixão pelo homem maduro e experiente que a cada dia a surpreendia com suas facetas, sempre mostrando algo novo sobre si mesmo que nela gerava enorme apego.
Do jovem pianista, ela guardou a lembrança da terna recepção, não obstante a enorme diferença de idade, ele a tratara com igualdade e camaradagem. Ponderava que talvez ele tenha se dado conta de que ela já era uma velha, que não tinha talento, que não servia para ser sua amiga e que ele tenha sido gentil até o ponto em que ela começou a lhe aborrecer com suas intermináveis conversas de amadora. Ela tinha duas filhas e mal conseguia conversar com elas também...
Da belíssima mulher madura, Nilson guardou a mágoa do amor traído, do assassinato culposo (sem intenção de matar!) da esperança que ele tinha de conhecer um amor, de viver uma história, de penetrar no universo dos inconseqüentes. Ele a julgou vulgar, por entregar-se aos beijos do alemão. Ele a sentenciou condenada a passar o resto de seus dias no calabouço do seu desprezo. Ou talvez devesse ele mesmo arrancar seus olhos para não tornar a ver no rosto dela o sorriso que brotava quando olhava Wolfgang e suspiravam juntos, em sintonia total.
Nilson Moretti nunca mais envolveu-se com mulher alguma.
Morreu aos 50 anos, na casa de seu filho Olivier, e na hora da morte não passou um filme de sua vida na mente. A última cena que seu cérebro projetou como memória, antes dele expirar foi a visão dela, no dia do concerto, aquele momento dourado, quando ele viu sua musa pela primeira vez na platéia do Teatro Amazonas.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O mestre imortal

O veneno que me deste para beber
Tornou-me robusta como Pégasus
Fez-me fiel a mim mesma como uma águia
Deu-me a tenacidade que faltava aos meus músculos
Fortaleceu minhas fibras.


                       A crueldade com que me trataste
                       Mais aguçou meus sentidos
                       Mais adocicou meus gestos
                       Mais sensibilizou minha alma
                       Aos que sofrem
                       Aos famintos
                       Aos que não tem berço de ouro
                       Aos que vivem como zumbis, nessa terra sem lei.
                       Compreendi tudo o que está além da dor...


A tortura requintada que me infligiste
Fez-me ver a tua pequenez
Enxerguei-te translucidamente
Em toda a tua desmedida soberba
Em tua sabedoria congelada
Eu pude enfim compreender a tua fraqueza
A tua mascarada tristeza,
Coberta com inexorável manta puída,
Tecida pelos elogios dos miseráveis que te cercam.


                      Eu avistei o teu castelo abarrotado de vermes
                      Que à tua soleira vomitam bajulações
                      Adulações, venerações
                      A ponto tal
                      Que como um tolo
                      Crês mesmo que és Imortal!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Viajantes do tempo

As respostas que eu persigo não se escondem neste tempo
Nem neste espaço.
Ninguém pode mudar o destino
Mesmo que apresse seu passo.
E nem consertar o passado
Buscando dar vida ao que foi sepultado.

As gerações vem e vão
Pais, mães, avôs e avós,
Nossas irmãs e irmãos...
Nascemos e morremos sós.
E não podemos parar
A vida acha formas de continuar.

Há coisas que não têm explicação
Sombras que não conseguimos ver
Algumas vezes temos que aceitar os fatos
Em outras enfrentamos o dragão!
Os fragmentos que restaram do que fomos
Servirão como alimento para novos ratos.